sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Investigação para Quê?

Uma das coisas que mais chama a atenção quando se compara as escolas de direito portuguesas com as norte-americanas é a confrangedora situação orçamental. Enquanto nos Estados Unidos, num campus, a escola de direito está sempre entre as que têm mais recursos, pagam melhores salários, etc., em Portugal, a escola de direito está sempre entre aquelas que mais problemas orçamentais tem, já nem falando de ameaças para fechar as portas porque nem pagar salários pode. Este contraste resulta, em parte, do retorno da investigação. Nos Estados Unidos os resultados económicos da investigação são essencialmente da escola e em menor medida do académico. Reputação e qualidade significa mais fundos para a escola, mais financiamento, melhores salários. Em Portugal, estes resultados são privatizados e trazem muito pouco para as escolas. Quase todos os professores de Direito potenciam a sua investigação nos resultados em termos de pareceres, consultoria jurídica, e nomeações governamentais. Nada disso acontece no mundo anglo-saxónico. Isto tem três consequências importantes. Uma, a cartelização do mercado dos professores de direito por forma a maximizar rendas nos pareceres e nomeações. Dois, a transformação das escolas de direito em plataformas de acesso a outros mercados pelo que as faculdade de direito em Portugal têm muito pouco de centros de investigação (resident faculty, working-papers, etc.) e muito pouca ambição internacional. Três, a inexistência de investigação fundamental digna desse nome.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Sim, 'Método(s)'!

Concordo com a diferenciação e multiplicidade de métodos e cargas horárias propostos. E esse é de facto o caminho que a UCP está já a trilhar. Disciplinas como Teoria Geral do Direito, por exemplo, não se podem seguramente fundar em exclusivo no método do mooting. Para responder aos desafios da mudança é necessário ter os pontos de referência que se apreendem com o estudo dos princípios e das regras e não com os meros exemplos (lembre-se o perigo de as actualizações legislativas se resumirem à constante aprovação de novas leis que substituem as anteriores!). Esta é a face mais positiva do ensino português.
O que me preocupa é a abordagem metodologicamente monolítica que tem caracterizado o ensino do Direito em Portugal, tal como noutros sistemas continentais. Abordagem que encontra fortes resistências à mudança em algumas das características tradicionais da nossa universidade, como, v.g., a elevada carga horária para alunos e para professores, com todas as implicações que isso tem a nível de leccionação, aprendizagem e avaliação, e a preferência por uma postura de obediência intelectual ou passividade.

Ficará para outra oportunidade o tema da delimitação ‘ensino’/‘investigação’.

Economia Anti-Dogmatica

A proposta mais vibrante da Analise Economica do Direito (AED) do ponto de vista do assalto aos dogmas enraizados na consciencia comum dos juristas e a reforma do processo civil. E uma proposta vibrante nao porque seja obvia -- eu discordo em toda a linha do seu conteudo -- mas porque obriga os juristas a pensar sobre as premissas ocultas da profissao. Numa palavra, perturba e "irrita" a sensibilidade dogmatica dos juristas.

Do ponto de vista da AED, e absurdo conceber o processo civil como um instrumento de garantia de "direitos". A compensacao atraves dos tribunais do titular de um direito violado e extraordinariamente cara e nao traz nenhum beneficio social, pois no fim de contas nao se fez mais do que transferir recursos de um lado (o agressor) para outro (a vitima). Um seguro social desempenha essa tarefa de uma forma bem mais economica.

Mas entao para que pode servir a litigancia? De um ponto de vista de AED, so pode ser interessante quando funcione como um instrumento de prevencao. Qualquer agressor racional ingora os danos da sua actividade na esfera de terceiros (externalidades negativas) se nao existir um mecanismo que garanta a internalizacao dos custos. Mas muitas vezes o processo civil e tao caro -- somando as despesas das partes e os custos para o erario publico -- que o impacto da proteccao judicial da legalidade nao justifica o acesso aos tribunais. Isto pode parecer monstruoso mas e uma banalidade economica: num mundo em que garantir "direitos" custa dinheiro, pode ser relativamente eficiente deixar uma categoria de agressores violar sistematicamente os direitos das vitimas. E que so vale a pena, do ponto de vista da eficiencia, mobilizar o processo civil para a tutela dos direitos quando o beneficio social supera os custos.

Para ter uma ideia mais concreta do que e que estamos a falar, vejamos de perto uma categoria de casos comuns que geram questoes de responsabilidade civil: acidentes de automoveis. De acordo com alguma literatura, os tribunais deveriam recusar o "acesso a justica" nestes casos. E que os condutores de automoveis tomam espontaneamente medidas de prevencao porque o perigo de um acidente constitui uma ameaca credivel nao apenas para terceiros mas para o proprio condutor. Por outras palavras, parece mais ou menos claro que os niveis de prevencao, mesmo na ausencia de um sistema judicial operacional, sao razoavelmente elevados. De onde resulta que o beneficio social de pleitar casos de acidentes de automoveis e bem pequeno.

Um sistema eficiente de litigancia poderia ser construido com base no seguinte principio: a vitima so e compensada se conseguir nao apenas provar que o seu direito foi violado mas que o beneficio social de trazer a questao a juizo e maior do que o custo de funcionamento do sistema judicial. Em alguns contextos -- e.g., responsabilidade baseada na culpa -- o sistema pode funcionar bem nesta base; noutros contextos -- e.g. responsabilidade objectiva -- parece improvavel.

Uma coisa e certa: e um excelente antidoto contra o dogmatismo estudar a economia do processo civil. Rapidamente se torna menos obvio do que parecia a celebre banalidade de Castro Mendes: "Para cada direito uma accao". Garanto que para mim, que rejeito o argumento economico, foi o melhor remedio contra a naturalizacao ou banalizacao do que e, ao fim e ao cabo, bastante problematico.

Método(s)

Em meu entender um dos grandes problemas na reequação do ensino do Direito (e demais áreas) em Portugal estará sempre em tentar preservar um certo e indispensável equilíbrio entre especialização e formação geral sólida, garantindo ainda uma certa dose de razoabilidade na carga de trabalho.

Isto é, a Faculdade deve permitir que os alunos respirem, se divirtam e sobretudo se cultivem em muitas outras matérias, em suma, que possam crescer também num mundo que não seja a faculdade. Creio que ter esta preocupação em mente poderá permitir avaliar melhor o que tenho a dizer.

Creio que uma boa forma de escapar à tradição da memória e passividade que nos foi imposta, consistiria em orientar seminários práticos de curta duração. Ou seja, penso que talvez não se justifique que todas as cadeiras durem 6 meses ou 1 ano. Talvez fosse mais eficaz abrir seminários de 5-6 dias (por exemplo) sobre um determinado tema do que ensinar durante 6 meses o mesmo conteúdo. Por exemplo, parece-me que cadeiras como direito do consumo poderiam ser eficazmente substituídas por formações rápidas e intensivas em que os alunos se inscreveriam ad hoc. Concordo com o mooting proposto pela Cláudia para tais seminários, porque me parece ser também a melhor forma de exigir que os participantes se preparem previamente.

Creio que o semestre pode ser dividido de formas diferentes: porque não dar x cadeiras durante Fevereiro e Março e outras x durante os últimos meses do semestre (Abril e Maio)? Permitiria concentrar a aprendizagem de matérias opcionais, de formação lateral mas indispensável ao crescimento intelectual. A avaliação poderia ser feita aquando do fim dessa cadeira. Desta forma com durações e percursos de formação diferentes creio que quer professores, quer alunos poderiam gerir o seu tempo de forma mais racional. Experimentei em Itália, e gostei. Fiz duas cadeiras que duraram o semestre todo e duas que duraram 2 meses. Acima de tudo senti que foi imensamente produtivo.

Em relação à memória vs. capacidade de lidar com todos os meios de resposta, confesso que para mim a questão não é óbvia. Penso que se obterão melhores resultados com um sistema misto. Entendo que deve haver períodos de aprendizagem e sedimentação teórica muito intensivos seguidos então de discussão prolongada. Sob pena dos alunos deixarem de conseguir acompanhar o ritmo. Por isso creio que aulas baseadas em mooting devem ser acompanhadas de aulas mais expositivas (não esqueço Gonçalo, quando o Hespanha te dizia que não apreciava muito a "modernice" da participação nas aulas pelos alunos).

A sua questão final, Cláudia pode ser vista do avesso. Precisamente num mundo de complexa mudança, a falta de estruturas sólidas pode apesar desse método de busca, obstacularizar a aprendizagem futura por falta desse quadro comum e estável de referências. Diga-me uma coisa: se desse todas as aulas dessa forma teria tempo para estudar e investigar? Eu até estou disposto a ser professor o tempo todo, mas já que apresentou esse método, fiquei curioso. Concorda com uma certa especialização entre Professores e Investigadores?

Em Itália frequentei a faculdade de Trento: http://www.jus.unitn.it/FACULTY/guida/home.html. Eles tinham laboratórios aplicativos muito interessantes que funcionavam "junto" de certas cadeiras. Por exemplo: frequentei História do Pensamento Jurídico Moderno e o laboratório (facultativo) incidia sobre a leitura de S. Tomás de Aquino e Maquiavel - na versão e línguas originais. Estes laboratórios valiam 2 créditos e apenas 2 horas por semana (uma obrigatória valia 8) mas estendiam prometedoramente o âmbito da formação dada e permitiam motivar uma outra franja de alunos dando-lhes experiências diferentes.

Termino com duas sugestões:

1) O Programa da Católica de Lisboa pós-Bolonha a começar para o ano é muitíssimo prometedor em termos de conteúdos. Muito foi feito de modernização, ao contrário do programa da Nova, que com nomes muito semelhantes persegue os mesmos objectivos

2) Para aqueles interessados em Filosofia do Direito e também em Filosofia Pé-Socrática, recomendo o livro de Francesco Cavalla, Retorica, processo, verità (CEDAM 2005). Cavalla é o caposcuola de Filosofia de Pádua, expert em metodologia jurídica. Pelo que tenho folheado sobre o tema, esta é mais uma das escolas desconhecidas pelos autores em geral. Provavelmente porque tal como nós se preocupam apenas com Itália e o italiano. Estudei com um discípulo dele, pelo que se precisarem de mais informação, contem comigo.

Metodologia do ensino jurídico: apelo à memória e à passividade

Este ano lectivo a Faculdade de Direito da Universidade Católica pediu-me para leccionar dois cursos em inglês. Optei por recorrer à utilização do ‘método socrático’, na sua versão de ‘mooting competition’, com que contactei em diversas das universidades estrangeiras por que tenho passado.

Durante duas semanas, discutiram-se diariamente nas minhas aulas casos de Direito Internacional e Europeu do Ambiente. Inicialmente houve alguma resistência dos alunos porque o trabalho exigido era significativamente mais do que aquele a que estavam habituados. Mas no final do curso os resultados foram extremamente gratificantes. Aquelas pessoas, algumas das quais ainda no segundo ano da licenciatura, aprenderam efectivamente o que se propôs ensinar-lhes. Desenvolveram o espírito crítico, a capacidade de investigação e, acredito, descobriram que conseguem responder a desafios que inicialmente lhes pareciam inultrapassáveis. O entusiasmo, empenho e qualidade da sua prestação compensaram largamente os muitos dias em que o meu trabalho se resumiu à preparação daquelas aulas.

No final do curso participei num seminário sobre metodologia organizado pela mesma Faculdade e leccionado por um professor da Roger Williams University (EUA) onde o referido método foi recomendado. A receptividade dos presentes foi reduzida, como acredito que seria em qualquer outra universidade portuguesa, nalgumas delas talvez ainda mais do que na UCP. O principal argumento utilizado foi a exigência em termos de trabalho, tanto para os docentes como para os alunos, que tal abordagem implica. Por experiência própria concordo. A exigência é muito superior à do método expositivo tradicional e a carga horária nas universidades portuguesas é significativamente superior àquela que existe nas universidades norte americanas, por exemplo.

Deixo à reflexão o seguinte. Num mundo em mudança acelerada e constante, uma instituição que tem por função ensinar a aprender, como é a universidade, deve apelar à memória e à passividade ou à capacidade de buscar e tratar a informação necessária à resolução dos problemas?

A Ciência Jurídica em Portugal

Somos tantos os que acham que a ciência jurídica não vai bem em Portugal. Este será um espaço de debate. Já não basta um lamento ocasional, mas é importante contribuir para que a reforma do ensino e da investigação do direito em Portugal possa acontecer. Aqui será esse espaço de debate que conta com a participação de professores e doutorandos, isto é, investigadores por excelência que partilham meia dúzia de pontos de vista. Nada de pensamento único, ou coisa que o valha. Nada de só dizer mal mas sim apontar ideias, temas interessantes, artigos recentes, bibliografia relevante, etc. Evidentemente que não faltarão os pontos chave como a necessidade de desmobilizar o sistema feudal de dependências pessoais instalado nas faculades de direito, o ataque à excelência e o predominio da mediocridade, a insensibilidade inter-disciplinar e o embrutecimento metodológico, a veneração da dogmática em detrimento da teoria e do estudo institucional e empirico e a fuga desesperada de qualquer especie de integração no mercado académico internacional. No fundo, pretende-se criar um espaço embrionário de diálogo entre quem tem outro modelo de ensinar e investigar direito.